Vivemos em tempos compulsivos em que vale tudo para ser feliz. Em busca da felicidade, justificamos muitas das nossas ações. É comum largar relacionamentos, empregos, mudar de casa ou cidade, em nome da tão desejada felicidade. A busca por uma vida feliz não é uma novidade dos nossos dias. No ocidente, há 2300 anos, Aristóteles concluía que as pessoas têm a felicidade por meta. Voltemos o olhar para o oriente, veremos os mestres taoistas como Lao-Tsé e Zhuangzi, propondo um caminho de felicidade por meio da harmonia com a grande espontaneidade do universo. Desse modo, a felicidade parece ser um desejo profundamente enraizado do coração do homem e existem muitas propostas de vida boa, mas pouco se questiona: somos todos capazes da felicidade?
A pergunta pode parecer estranha, afinal, a felicidade além de uma ambição histórica da humanidade, é um dos dogmas centrais da sociedade moderna. Acreditamos que todos podemos ser felizes e trabalhamos a partir dessa construção, mas a realidade é que a experiência de felicidade impõe suas condições. Não obstante, não elaboramos adequadamente de que “felicidade” estamos falando. A experiência da felicidade pautada na realização de desejos é, seguramente, mais fonte de angustias do que alegrias. Impõe-se, portanto, outra pergunta: De que felicidade somos capazes?
Certamente, não uma felicidade da imaginação ou realização plena dos desejos. Como fica evidente no trabalho de Sigmund Freud (1856-1939), não temos consciência das nossas pulsões, e a realização plena e direta dos nossos desejos inconscientes pode ser fatal para o eu. É preciso olhar para uma felicidade mais próxima da “terra firme”, sem nutrir um olhar imaginativo equiparando-a a sentir boas sensações ou ausência de perturbações, pelo simples fato de que o mundo não existe para nos satisfazer. Estar vivo é lutar contra a tendência natural das coisas a dissolução.
Rubem Alves (1933-2014), quando questionado sobre a felicidade, costumava citar Guimarães Rosa e dizia: “felicidade, só em raros momentos de distração”. A ideia é que a felicidade é como uma borboleta que só pousa em nossa mão quando, esquecendo-a, deixamos de persegui-la. A despeito da lírica de Rubem Alves, defendo que as coisas são um pouco diferentes: felicidade, só em raros momentos de atenção.
A atenção se tornou um luxo cada vez mais raro em nossa sociedade hiperconectada. Disputam nossa atenção inúmeras empresas que nos bombardeiam com anúncios, influencers, criadores de conteúdo, políticos e a lista continuaria ao infinito se quiséssemos. Mas o que é atenção? Podemos compreendê-la como uma função cognitiva superior que nos permite focar em determinado objeto ou tarefa. O psicólogo húngaro-americano Mihaly Csikszentmihalyi (1934-2021), foi um dos pesquisadores que mais estudou a felicidade ou vida boa nos últimos anos. Mihaly desenvolveu o conceito de fluxo ou flow, que seria um estado de “experiência ótima” caracterizado pela imersão e prazer que podemos alcançar quando nos engajamos positivamente em uma atividade compatível com nossos interesses e nível de habilidade.
O flow é, essencialmente, fruto do bom uso da atenção. Nele, a consciência se funde com o que está sendo feito, eliminando distrações e o ruído mental que nos roubam do momento presente. Seu estudo evidencia que a “vida boa”, da qual não precisamos fugir continuamente nos finais de semana é possível. A exigência? Aprender a controlar nossa experiência interior.
A felicidade, na verdade, é uma condição para a qual devemos nos preparar, que deve ser cultivada e defendida particularmente por cada um. Quem aprende a controlar sua experiência interior é capaz de determinar a qualidade de sua existência, que é o mais perto que podemos chegar de ser felizes.
Sem o controle da vida interior, estamos condenados a oscilar entre a busca pelo prazer e o tédio de não encontrar satisfação nos prazeres que obtemos, o que nos leva a buscar ainda mais novidades. O que determina a qualidade da nossa experiência é, principalmente, a qualidade da nossa atenção. Não é preciso viver experiências grandiosas e intensas para nutrir uma atenção de qualidade. O principal é engajamento com o que se faz, partindo de uma intenção clara e deliberada de focar nossa energia psíquica em uma tarefa específica e ignorar o restante.
Recentemente, tive contato com uma prática um tanto esquisita que exemplifica bem esse ponto: a TaKeTiNa. Essa técnica, desenvolvida na década de 1970 pelo percussionista austríaco Reinhard Flatischler, consiste num processo coletivo, meditativo e rítmico. A proposta é construir um ritmo em camadas: voz e movimentos corporais acompanhando compasso musical. No começo, nada faz muito sentido. Depois, conforme a construção é feita e interagimos com as outras pessoas do grupo, a prática estranha passa a ter uma certa ordem e nos engajamos para mantê-la. Conforme mais camadas são adicionadas, o caos começa a aparecer e torna-se cada vez mais complexo manter a sinestesia da prática. Essa dissolução, que em outro contexto seria fonte de angústia, aqui se torna parte do foco, exigindo um tipo de atenção que não busca o controle, mas o engajamento na própria desordem. Ao final, tendo o caos dissipado a ordeira experiência construída pelo grupo, os participantes são conduzidos em meditação.
É muito difícil relatar o que senti nessa experiência com a TaKeTiNa. Conforme explicaram-me depois, não havia metas a serem alcançadas. O que se sente, insights, bem-estar ou qualquer outra experiência seriam resultado da motivação e engajamento pessoal de cada participante. Foi uma estranha experiência de flow dominada por uma dialética da atenção desatenta: o ritmo e o movimento direcionam a atenção, mas qual o objeto da atenção senão a desatenção a todo o resto?
O mundo não nos deve nada, não existimos para a felicidade e a nossa experiência é, no mais das vezes, caótica e inesperada. Ainda assim, é preciso exercitar atenção nas pequenas coisas que fazem sentido para nós para experimentar uma felicidade próxima da terra firme da nossa vida.
Nossa felicidade depende da harmonia interior, não do controle que exercemos sobre as grandes forças do universo.
A euforia da desatenção que está sempre em busca do próximo estimulo não é suficiente para preencher o coração do homem. Vive-se com intensidade até que o momento acabe. O que segue disso é a queda no abismo do tédio até que nos empenhemos na busca do prazer novamente. A felicidade está longe da busca desenfreada (e insana) por prazer. Felicidade, só em raros momentos de atenção.
Referências
CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Flow: A psicologia do alto desempenho e da felicidade. São Paulo: Editora Objetiva, 2020.

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