O mito da originalidade

A originalidade é um tema que assombra a muitos. Não ser original é um crime denunciado e temido aos quatro ventos. Escrever sobre originalidade é, inclusive, bem pouco original. Mas seria a originalidade algo possível? E ainda, seria desejável ou mesmo necessária?

Certa vez, li em “Roube como um artista”, de Austin Kleon, que só julgamos a originalidade de algo por desconhecermos de onde aquilo foi copiado. Vejo na originalidade tanto um mito quanto uma ambição moderna oriunda do autocentramento. Ambas quimeras que não frutificam, não levam a lugar algum. Ainda assim, é necessário um esforço para compreender esse fenômeno que tira o sono de tantas pessoas em nossos dias.

Muito do que pensamos repousa em nossa herança filogenética, ou seja, em fatores biológicos, sociais e culturais que se provaram valiosos para a continuidade da espécie. Em outras palavras, pensamos certas coisas por sermos “programados” para pensá-las. Ao longo da nossa história evolutiva, por exemplo, estar em grupo foi um fator decisivo para a sobrevivência. É preferível enfrentar um leão em grupo do que sozinho. O ímpeto da originalidade surge desse contexto: ser original significa diferenciar-se positivamente da maioria, oferecendo algo valioso e único. Imagine-se em um grupo de caçadores coletores: você preferiria ser aquele que sabe fazer lanças mais eficientes ou aquele que somente utiliza as lanças produzidas pela habilidade alheia?

Contudo, essa diferenciação tem dois gumes. Há também o risco da diferenciação negativa. Sócrates certamente se diferenciava da maioria de seus concidadãos quando questionava todas as coisas nas ruas de Atenas, mas, em seu caso, tal originalidade culminou na pena de morte por envenenamento. A história mostra que o destino pode ser cruel com quem se diferencia excessivamente.

Entre esses dois opostos — o herói original e o mártir original — existe a massa indiferenciada, à qual ninguém em sã consciência parece aspirar fazer parte em nossos dias. O medo da normalidade foi ainda mais intensificado com o advento das redes sociais que, apesar de seus aspectos reconhecidamente positivos, se transformaram em um templo digital onde se cultua o “eu”. Nesse contexto, o digital torna-se um ambiente de narcisismo e obsessão por si mesmo. Byung-Chul Han, em sua obra Infocracia: Digitalização e crise da democracia, explica que o digital ocupa o lugar de uma espécie de confessionário virtual, onde seguimos influencers como sacerdotes enquanto nos ocupamos de uma imagem narcísica de nós mesmos, sustentada a cada like. A partir dessa falsa necessidade por uma vida estética e romântica, o celular domina o sujeito moderno em sua busca exacerbada e distorcida pela “diferenciação”.

Até aqui, nada de original sobre o tema. Apenas traçamos dois pontos e um diagnóstico: a originalidade é socialmente bem-vista, desde que o sujeito não se torne tão diferente a ponto de excluir-se do grupo; em paralelo, tornamo-nos religiosamente obcecados por nossa autoimagem. Eis o palco montado. O que fazer a partir disso?

Como na grande maioria das coisas, o caminho mais acertado tende a estar no meio das posições extremas. Não devemos buscar obstinadamente a originalidade para fugir de ser “normal”, tampouco negligenciar totalmente a busca por viver autenticamente. O fundamental é que essa busca seja pautada em nossas convicções, valores e na terra firme da realidade — pois seria muito original propor ideias absurdas, delirantes e totalmente desconectadas do real.

É preciso compreender que a originalidade é filha da criatividade. Somos naturalmente criativos (basta lembrar da sua infância ou ficar alguns minutos com uma criança pequena). Vivendo no terreno da criatividade, a originalidade surge naturalmente, pois ela nada mais é do que calibrar a visão para ver as coisas que já existem de uma forma diferente. Como dito por Alberto Caeiro, somos do tamanho daquilo que vemos. Por isso, não é preciso reinventar a roda diariamente, bem como a busca pela autoexpressão autêntica não precisa ser um culto ao eu. É possível encontrar o caminho do meio onde a criação faz parte de nossas vidas sem se tornar uma obsessão patológica.

No fim do dia, acredito que o mundo seria um lugar bem mais interessante se deixássemos de lado a busca idealista da vida estética. Se saíssemos um pouco das telas, do consumo passivo e massivo de conteúdos, e buscássemos simplesmente expressar o mundo tal como o vemos, unicamente porque não poderíamos vê-lo de outra forma.


Referências

HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. São Paulo: Editora Vozes, 2022.

KLEON, Austin. Roube como um artista. São Paulo: Editora Rocco, 2013.


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