Anatomia do absurdo

Numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo pode bater no rosto de um homem qualquer.

— Camus, O mito de Sísifo, p. 25

A vida não nos espera. Cada dia cobra de nós um posicionamento: é preciso trabalhar, estudar, dar conta dos nossos projetos, atenção aos nossos amigos e pessoas íntimas, não se descuidar da saúde e inúmeras outras demandas da vida. Em uma palavra, precisamos funcionar. E funcionamos, até que em um dia qualquer, nascido sob o mesmo sol e a mesma promessa de normalidade, somos assaltados por um sentimento indistinto que se confunde com angústia e aperto no peito. Não sabemos o que é, mas sabemos o que ele denuncia: nosso divórcio com a realidade que antes, tão comum e rotineira, agora nos parece estranha.

Esse sentimento de ruptura com o mundo, Albert Camus (1913-1960), chamou de “absurdo”, e dedicou uma parte considerável de sua obra filosófica e literária representando-o e explorando as possibilidades que se apresentam a partir da experiência absurda.

A figura utilizada por Camus é para capturar o movimento absurdo é a do mito de Sísifo. Na história, Sísifo foi um homem sagaz, condenado pelos deuses a uma tarefa inútil e infinita por ousar desafiá-los. Eis a tarefa: No submundo, ele empurra uma rocha pesada até o topo de uma montanha, só para vê-la rolar de volta quando ela está prestes a chegar ao topo e ter que recomeçar a escalada.

Da tarefa infinita e sem sentido de Sísifo, Camus extraí o símbolo da condição absurda: repetição sem lógica. Afinal, o que há de lógico no absurdo? Nada. O sentimento absurdo é justamente o “confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo”. A tarefa de Sísifo deve ser sentida na sua carne, mas nunca compreendida. O absurdo, quando admitido pelas vias da lógica, deixa de ser absurdo, e “só tem sentido na medida em que não seja admitido”, afirma Camus. Por outro lado, se o ignorado, a coisa cresce silenciosamente, como se estivéssemos dando “quatro batidas secas na porta da desgraça”.

Se não pode ser compreendido, o que resta a fazer diante do sentimento de absurdo? Camus, via um desafio existencial no absurdo, uma vez que para o homem absurdo, nada está determinado. O mundo se apresenta como um quadro em branco, que não responde aos seus anseios e a sua vontade de sentido. É difícil colocar em palavras, mas é preciso compreender que a realidade que experimentamos como “normal” é construída e frágil. Depende de uma teia interminável de condições que possibilitam que aquela experiência se manifeste como dotada de sentido para nós. Quando se esgota esse sentido construído, o que resta? O absurdo e o silêncio do mundo.

Diante desse sentimento, existem muitos caminhos possíveis. Søren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês do século XIX, com o qual Camus dialoga, via uma possível resposta no movimento que ele chamou de “salto da fé”, ou seja, uma abertura ao absoluto, a Deus. Camus, por outro lado, considera essa atitude um suicídio filosófico por resolver o problema pela fuga ao transcendente. O absurdo deve ser enfrentado no seu próprio terreno.

Desse embate com o absurdo, sem fugir pela via transcendente, idealista ou qualquer outra que se apresente; Camus extraí três consequências: liberdade, revolta e paixão.

Comecemos pela liberdade. Se nada está determinado e os anseios de sentido do homem não encontram eco no mundo, o que resta senão a liberdade? Sísifo nada pode fazer para mudar sua condição, mas ainda é Sísifo que caminha e carrega sua rocha montanha acima. Ainda é Sísifo que sente o calor do sol, o suor do esforço e o peso dos dias.

O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã. Essa é, a partir de então, a razão da minha liberdade profunda..

— Camus, O mito de Sísifo, p. 72

Desse homem livre debaixo do sol em um mundo de silenciosa desrazão pode nascer então a revolta. Revoltar-se é, essencialmente, dizer “não”, ou seja, negar um estado de coisas. A negação revoltosa não nasce de uma aspiração. Não se nega algo somente para propor outra coisa no lugar. A revolta surge da desmedida das coisas. O homem revoltado não precisa aspirar a outra realidade, paraíso ou utopia — sua negação nasce do sofrimento que sente na carne.

Revoltar-se, contudo, não é o suficiente. O silêncio do mundo continua, como uma tela em branco, desafiando o homem. É então que tem lugar a paixão que se manifesta na criação. Ser livre, revoltar-se, para então criar, mas o que cria o homem absurdo? Primeiramente, cria a si mesmo. Ainda que o mundo continue a negar-lhe as respostas, sua vida lhe pertence e dela pode fazer o que quiser. Com que finalidade cria? Nenhuma, cria a despeito do absurdo, movido por sua paixão pela vida. Buscar um fim seria dar com a cara na parede do absurdo outra vez. Na criação sem fim o homem encontra sua liberdade e manifesta sua revolta.

Tudo isso pode parecer um drama demasiado individual e intimista de um filósofo francês que viveu no sombrio século das grandes guerras mundiais, mas não é assim. No pensamento de Camus, a consciência do absurdo é também um chamado à fraternidade. A revolta envolve, necessariamente, o outro — Camus desenvolve melhor essa tema em obras como A Peste e O Homem Revoltado. Não há espaço para falar disso aqui, mas julgo importante destacar o sentimento do absurdo é humano e, portanto, pode tocar a todos os homens cedo ou tarde. Está longe de ser somente um drama ensimesmado.

O essencial no absurdo é não negá-lo, mas respondê-lo. Esse movimento não é fácil, nem simples, mas necessário. Eis tudo o que se pode dizer. Camus articulou sua resposta por meio da liberdade, revolta e paixão. Essa resposta será suficiente ou necessária para todos? Talvez sim, talvez não. Somente Sísifo, carregando o peso do pedregulho rumo ao cume da montanha todos os dias sem fim, pode sentir sua própria condição e agir em resposta a isso. Do mesmo modo, cabe a cada homem cujo sentimento de absurdo bateu no rosto, responder a isso com sua própria vida.

A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração do homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.

— Camus, O mito de Sísifo, p. 141

Referências

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro, RJ: Editora Record, 2021.


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