Ética (1677)

Existem poucos livros dos quais podemos falar com sinceridade que alteraram profundamente o curso de nossas vidas. Para mim, a Ética de Bento de Spinoza (1632-1677), é um desses livros raros que, se você tiver a sorte de encontrar e o empenho para acompanhar os raciocínios inexoráveis do filósofo, possui o potencial de transformar sua existência.

A despeito da minha admiração pelo brilhante Spinoza, devo admitir que ler a Ética é uma experiência desconsertante. O método geométrico com que a obra é escrita torna o texto árido. Para entendermos os afetos humanos, somos convidados a pensar primeiramente sobre Deus. Em um só movimento, ficamos convencidos das excelências da razão e perplexos com suas fragilidades. Spinoza quase poderia dizer, com Riobaldo: ‘O senhor ache e não ache. Tudo é e não é.’

Os aparentes paradoxos são, todavia, inevitáveis. A estranheza é parte do processo e a medida que a obra evolui, sentimos cada elemento do método geométrico — definição, axioma, proposição e escólio — como uma rápida pincelada de um artista genial, aproximando o leitor de verdades incontestes sobre si mesmo e o mundo em que vive.

A grande questão de Spinoza é: por que, conhecendo o melhor, buscamos o pior para nós? Como esse homem, dotado de razão, torna-se submisso a coisas que ele mesmo desconhece?

Spinoza, que polia lentes para se sustentar, sabia muito bem da importância de pôr as coisas em perspectiva para que se possa ver com clareza. É por essa necessidade de clareza que o filósofo delineia, em sua obra, um plano rigoroso dividido em cinco partes:

  1. De Deus;

2. Da natureza e origem da mente;

3. Da origem e natureza dos afetos;

4. Da servidão humana, ou a força dos afetos;

5. Da potência do intelecto, ou da liberdade humana.

Deus ou Natureza é o ponto de partida de Spinoza — seu plano de imanência a partir do qual se pode trabalhar em uma ética mais próxima da terra firme e menos sujeita a fantasias da mente humana. Deus é ato contínuo, substância infinita do qual todo o resto são somente modos de expressar a substância. Se é assim, somos modos de Deus, ou seja, manifestamos, no singular, aquilo que é universal e imanente, e então podemos dar mais um passo para compreender a mente e o corpo. A partir da compreensão disso que somos, Spinoza busca clarificar como surgem os afetos e qual sua força sobre nós e vice-versa. Somente depois desse percurso preliminar e indispensável é que podemos falar de servidão e liberdade humanas.

A Ética é um verdadeiro sutra do amor intelectual a Deus. Nela, Spinoza, como um mestre do bom uso da razão, se propõe ensinar o caminho das pedras para viver mais coerentemente com Deus ou Natureza, e menos sujeito aos afetos que nos apequenam, tolhem nossa liberdade e nos conduzem às agruras da servidão. O caminho não é fácil, mas é simples. Não há mistérios ou verdades escondidas nas estrelinhas.

Se agora parece árduo o caminho que eu mostrei conduzir a isso, contudo ele pode ser descoberto. E evidentemente deve ser árduo aquilo que tão raramente é encontrada. Com efeito, se a salvação estivesse à mão e pudesse ser encontrada sem grande labor, como poderia ocorrer que seja negligenciada por quase todos? Mas tudo o que é notável é tão difícil quanto raro.

— Spinoza, Ética, p. 579

A Ética pode ser muitas coisas, menos uma teoria distante da vida. A aridez do método pode afastar o leitor num primeiro momento, mas as questões e descobertas de Spinoza tocam a todos, ainda que exijam esforço e trabalho sobre si mesmo.

O lema de Spinoza era Caute!, que do latim, significa algo como “tenha cuidado”. Seu lema não foi distante de sua vida e obra. Bento de Spinoza, buscou em seu trabalho não odiar, lamentar ou rir dos afetos humanos, mas compreendê-los e a Ética é seu convite a todos que estiverem dispostos a fazer bom uso da razão — sobretudo, aos diligentes que não se contentam com ninharias intelectuais ou receitas prontas da tradição —, para examinarem com prudência aquilo que desconhecem ou julgam conhecer sobre si mesmos.

Não há mais nada a ser dito, caro leitor. Espero ter despertado minimamente seu interesse por Spinoza, mas lembre-se: Caute!


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