A cena é familiar: o barulho do alarme quebra o silêncio do sono quando você, meio desorientado, encara a luz fria do celular. As notificações saltam da tela e os problemas te assaltam antes mesmo do primeiro café. Não são nem 6:00 da manhã.
Você se arrasta até o banheiro, lava o rosto e encara o espelho. O suspiro que escapa é pesado, como se a própria vida se esvaísse com o ar. O dia, então, se desdobra em uma sucessão de obstáculos. Colegas irritantes, burocracias que parecem não ter fim, o barulho estranho no motor do carro que ontem não estava lá. Para completar, você se lembra da conta de luz vencida.
De problema em problema, as horas se dissolvem, e mais um dia se vai para sempre, sem que você o tenha realmente vivido. À noite, exausto e tão atordoado quanto pela manhã, você se entrega ao feed infinito das redes sociais novamente — como uma oração; buscando um alívio, uma fórmula mágica. E é então, depois de muita rolagem, que você se depara com um dos grandes fetiches do nosso tempo: o estoicismo.
Há alguns anos, o estoicismo tem sido resgatado (ou sequestrado), como uma filosofia da resiliência, capaz de equipar o homem moderno com o “mindset” adequado para sobreviver num mundo de incertezas crescentes. Nenhum pensamento está isento de reinterpretações ao longo do tempo, mas distorcer é bem diferente de reinterpretar. Nem o mais previdente dos estoicos do período clássico poderia imaginar sua doutrina reduzida a um punhado de frases motivacionais e exercícios para aliviar a ansiedade.
Esse estoicismo de rede social, que poderíamos chamar de “estoicismo de trend ”, é um produto sedutor. Ele oferece uma caricatura com verniz de filosofia, prometendo uma vida blindada contra o sofrimento e a frustração. Não admira que encontre tanto eco em nossos tempos de capitalismo tardio — um fenômeno similar ao que ocorreu com tradições orientais como o Budismo e o Yoga. Diante disso, a questão que se impõe é: a que interesses essa versão pasteurizada do estoicismo realmente serve?
Em filosofia não existem ideias sem vida. Não se pensa ex nihilo (a partir do nada), pensamos sobre aquilo que nos afeta. As ideias têm precedentes e consequências. Nesse sentido, conhecer uma filosofia é conhecer o filósofo que a idealizou. Quando olhamos para os estoicos, vemos figuras das mais diversas, mas nenhuma delas articulou seu pensamento em vista de suportar um dia cansativo ou para seguir num ritmo maquinal de produtividade exigido para “vencer na vida”.
Para os estoicos, a filosofia era, antes de tudo, um exercício para nos tornar mais coerentes com a natureza. É um erro julgar um pensamento por seus atributos isolados. Não se é estoico para ser resiliente. A resiliência reflete uma atitude interior e uma visão de mundo que, por sua vez, não surgem separadamente: a ética dos estoicos não seria possível sem a física (ou seja, uma compreensão do cosmos como regido por uma razão universal, onde todas as coisas cumprem um papel), e a lógica que formam a terra firme sobre a qual todo o edifício do pensamento é construído.
Instrumentalizar a filosofia para fins meramente utilitários é trair sua essência e esterilizar seu poder de transformação. Nisso reside a grande lição legada pela filosofia antiga, como nos lembra Pierre Hadot (1922–2010): a coerência entre discurso e vida não era um ideal, mas uma condição indispensável. “Todas as escolas”, escreve ele, “denunciaram o perigo que o filósofo corre se imagina que seu discurso filosófico pode bastar a si mesmo sem estar de acordo com a vida filosófica”.
Hadot também nos lembra, em sua obra “Exercícios espirituais e filosofia antiga”, que não se filosofa pela metade. A filosofia antiga, da qual o estoicismo faz parte, não é um paliativo. Ela exige conversão e busca educar para a sabedoria.
O ato filosófico não se situa somente na ordem do conhecimento, mas na ordem do “eu” e do ser: é um progresso que nos faz ser mais, que nos toma melhores. É uma conversão que subverte toda a vida, que muda o ser daquele que a realiza.
Não se recorre à filosofia como um meio de se adequar ao status quo. Pelo contrário, o pensamento filosófico brota, invariavelmente, de uma dissonância com a ordem das coisas, de uma profunda inquietação. Se o mundo como se apresenta nos bastasse, desapareceria o próprio ímpeto de investigá-lo. A aceitação plena da realidade anula o questionamento e, por consequência, a necessidade de conversão que define a vida filosófica.
O que é então o estoicismo? A quê um estoico se converte? E como busca sua meta?
O estoicismo, assim como suas escolas rivais, epicurismo e ceticismo, busca atingir a eudaimonia (termo que pode ser traduzido por felicidade, mas no sentido da realização própria do homem, diferente da compreensão vulgar relacionada ao gozo de uma vida satisfatória), por meio da imperturbabilidade de espírito ou ataraxia. Os estoicos consideram haver um logos no mundo, uma razão universal que rege o cosmos. Então, caberia ao homem, por meio do exercício da razão, cumprir o seu papel como um ator no teatro do existir e assim se realizaria: vivendo em coerência com sua própria natureza particular e a natureza universal, ambas racionais. Assim pondera Marco Aurélio, o grande imperador filósofo do séc. II d.C que sintetizou muito da doutrina estoica em suas meditações:
O que deves ter sempre em mente é: qual é a natureza do todo; qual é a minha natureza; como as duas se relacionam; e qual tipo de parte é a minha em relação a qual tipo de todo. E que não há ninguém que possa te impedir de dizer e fazer aquilo que é conforme a natureza de que tu és parte.
Disso compreende-se que a postura estoica diverge em muito da mera instrumentalização dos exercícios espirituais com a pretensa finalidade de tornar-se mais adaptado às incertezas da vida, mais hábil em suportar a fragilidade das relações modernas, ou ainda, se tornar um profissional melhor. Tais metas buscam, no fim do dia, diluir o estoicismo em uma sabedoria barata para suportar o desprazer que se apresenta na realidade. Não poderia estar mais distante do ideal do sábio estoico que não se resume a uma ética da resignação.
O estoico se compreende numa comunidade universal. Afinal, a razão que o rege se faz presente em todos os homens e no próprio cosmos. Seu uso, aponta para a virtude. O exercício da virtude conduz a moderação das paixões e a um modo de vida harmonioso com a natureza. Não cabe, portanto, um objetivo individualista e pequeno como o sucesso pessoal.
A prática estoica não visa à produtividade, ao desempenho ou ao alívio da ansiedade. Pelo contrário, o exercício da virtude e a superação das dificuldades são a única atitude racional a ser tomada se aceitamos a primazia da razão – como propõe o estoicismo. Nesse sentido, o olhar se volta primeiro para nós mesmos, pois é ali que reside nossa esfera de ação. A razão, por ser comum a todos os homens, fundamenta a busca por comunidade. Busca-se o bem não pelo desempenho individualista, mas pelo bem comum de humanidade. A tranquilidade da alma surge, enfim, não como uma meta, mas como a consequência de uma vida virtuosa.
À guisa de conclusão, voltemos, por um instante, ao sujeito que acorda cedo cheio de problemas. O estoicismo encontrado nas redes lhe oferece um analgésico: uma frase de Sêneca descontextualizada para que ele respire fundo e se torne mais um profissional eficiente, capaz de tolerar a barbárie da selva de pedra. A filosofia estoica, em contraste, oferece um modo diferente de se posicionar no mundo. Não uma pílula mágica, mas um convite a exercitar um modo de viver pautado em sabedoria, justiça, coragem e temperança.
O estoicismo da trend nos torna melhores sofredores; o estoicismo de Zenão, Epicteto, Sêneca, Marco Aurélio e tantos outros, nos convida a sermos mais plenamente humanos.
Referências e indicações de leitura
HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. 1. ed. Rio de Janeiro: É Realizações, 2014.
GAZOLLA, Rachel. O ofício do filósofo estoico: o duplo registro do discurso da Stoa. 1. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
Marco Aurélio. Meditações. Tradução de Livia Almeida. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.
O estoicismo é uma filosofia bastante acessível. Aos interessados, recomendo começar pelas Meditações de Marco Aurélio, em seguida as cartas de Sêneca e, por último, os discursos de Epicteto. Ademais, é importante compreender o contexto em que nasce essa filosofia. Por isso, recomendo também a leitura de “O que é filosofia antiga?” de Pierre Hadot, que traça um panorama do programa filosófico das escolas de pensamento da antiguidade. Por fim, lembre-se que por mais importante que seja a leitura, a sabedoria só pode ser buscado fora dos livros, na vida de carne e osso que acontece diariamente. Filosofar é preciso, mas viver filosoficamente é ainda mais.

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