Plenitude efêmera

Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.

— Friedrich Nietzsche

Se você tem algum interesse por organização, provavelmente já ouviu falar em Bullet Journal, método GTD (Getting Things Done), matriz de Eisenhower e outras panaceias da organização pessoal que prometem nos tirar da bagunça que é viver nas cidades do século XXI. Todos esses métodos prometem blindar nossa vida contra o caos. Nós, ingênuos, depositamos neles nossa fé em nome da tão sonhada plenitude — queremos viver uma vida que flua sem impedimentos.

Acontece que, de tempos em tempos, a vida inevitavelmente nos lembra que lutamos uma batalha perdida ao buscarmos a “plenitude” naquilo que é impermanente e imprevisível. Hoje, por exemplo, eu acordei e segui minha rotina perfeitamente: arrumei a cama, lavei o rosto, escrevi um pouco, tomei um banho, café da manhã, e comecei a me arrumar para sair, encarar o dia e mostrar a que vim. Uma manhã tão esteticamente arranjada que até poderia ser uma cena de série da Netflix. Poderia… até que essa plenitude construída escapou por entre meus dedos quando o caos deu sinal de vida em uma sucessão de desventuras que vão desde o problema com a bateria da moto a bagunça que o cachorro fez na garagem e não vou ter tempo para limpar.

Driblando a impermanência

Episódios como este que vivi não são raros. Acontecem, na verdade, com bastante frequência, e nos relevam nossa inabilidade ao lidar com a impermanência natural das coisas. A impermanência é uma dessas verdades que, de tão obvias, passam despercebidas. Tudo que surge de uma certa maneira, cedo ou tarde, se reorganiza de outra maneira. Simples não? Dito de outra forma: as coisas estão bem até que não estejam mais.

Conhecer uma verdade não implica saber lidar com ela. Por óbvio que seja a impermanência, estamos a todo momento tentando driblá-la. Socialmente, esse movimento foi até profissionalizado. O que faz uma seguradora além de vender uma garantia contra a impermanência? Pessoalmente, buscamos refúgio em filosofias, métodos de organização, simpatias e toda a sorte de pensamento mágico.

Back on the Chain Gang

Como não poderia deixar de ser, nossas tentativas de domesticar a impermanência não duram muito. Em um belo dia, ainda antes de tomarmos o primeiro café, as coisas mudam e temos que lidar com a realidade como ela é, em sua fluidez, devir e movimento incessante… Somos, então, tomados por um sentimento ambíguo, pois, gostamos da mudança quando nos favorece. O problema é quando a vida não segue nosso roteiro pessoal (spoiler, geralmente não segue mesmo).

Sou da opinião de que devemos aproveitar esses pequenos momentos cotidianos de crise como valiosas oportunidades para despertar do banal. Crise, em seu original grego, significa algo como dividir, separar, julgar. Nossas pequenas crises, portanto, se apresentam como circunstâncias favoráveis para tomar outro rumo na vida. Podemos também, é claro, nos apegar às mesmas formas de pensamento de sempre. Mas quem gostaria de continuar pensando e fazendo as mesmas coisas após quebrar a cara sistematicamente?

Dançando à beira do abismo

É preciso, pois, educar-se para a possibilidade. Voltemos a tranquila rotina matinal que o caos interrompeu hoje de manhã. Pode ser que amanhã, eu acorde e as coisas sejam tão ordenadas quanto um episódio de Downton Abbey; ou pode ser que sejam até piores do que foram hoje. O que se apresenta como meu território de ação: o ideal ou a possibilidade? O que todos temos a todo momento é somente a possibilidade. Nada pode garantir que sequer acordaremos amanhã, quanto mais se teremos um dia ordeiro ou não.

Penso que já escrevi demais. Agradeço a você, caro leitor, a paciência de ter me acompanhado até aqui. Espero que esta minha catarse de uma manhã estressante, tenha apontado para alguma verdade que valha a pena a contemplar. No mais, meu mais sincero, aproveite as possibilidades que temos a cada dia — ou pelo menos tente lidar com elas sem estragar o seu dia.


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