Setembro é um mês de contrastes. Ainda longe da renovação do ano novo, mas avançado demais para nos sentirmos energicamente dispostos a se engajar nos projetos do ano velho. É o mês da primavera, tudo floresce e as ruas ficam lindas de morrer. É também o tempo em que lembramos que suicídios existem, e que apesar da realidade que flui todos os dias, existem indivíduos em dor psíquica que preferem interromper o existir.
Suicídio é um tema caro para mim desde que me aproximei da obra do filósofo franco-argelino Albert Camus (1913–1960). É celebre a abertura do seu ensaio “O mito de Sísifo”:
Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é a pergunta fundamental da filosofia.
A obra é de 1942, de lá pra cá, muita coisa mudou, mas a angústia segue presente. Incontáveis pessoas ainda concluem que entre a dor do existir e o não existir, a última opção é imperativa.
No Brasil, as campanhas do Setembro Amarelo parecem não ter aprofundado a compreensão sobre a dor do suicídio desde sua criação em 2015. O debate, ao contrário, foi reduzido a um evento anual superficial, onde empresas oferecem gestos que dizem pouco e frases rasas, enquanto se isentam de questionar seu lugar como agentes de sofrimento psíquico.
Por que não incluir políticas de saúde mental efetivas ou trabalhar a produtividade considerando que se fala para seres humanos de carne e osso ao invés de máquinas? A meu ver, trabalhar essas questões ao longo do ano inteiro vale muito mais do que o hiperfoco no suicídio e saúde mental no mês de setembro.
Com isso, não quero denunciar por denunciar, mas é necessário reconhecer que a campanha pouco ajuda efetivamente, e se tornou mais uma prova social para empresas obterem selos de bons lugares para se trabalhar.
Abordar o suicídio como um problema a ser evitado a todo custo é raso demais. Ora, pensar sobre o suicídio é pensar sobre a morte. A ideia que temos de morte, altera também nossa vivência da vida e do luto. Não obstante, a verdade sobre a morte do suicida, vai embora com aquele que morre: Quem foi aquele que interrompeu voluntariamente sua vida? Em quais circunstâncias se encontrava? Como sua vida se desenrolou até agora? O que realmente sentia no seu íntimo e silenciava?
Todas essas questões ficam no tumulo lacrado. Por isso, diante de uma escolha como o suicídio, é preciso adotar uma atitude diferente do que a simples prevenção a todo custo. Não podemos ser cientistas compreendendo um fenômeno (pelo menos não somente). É preciso estar disposto a se colocar na difícil posição daquele que ajuda e vai ao encontro da dor do outro — que poderá ser nossa própria dor algum dia. Precisamos olhar para as formas de vida que se desenrolam em nossa sociedade. Como enfatizou o psicanalista francês Jacques Lacan (1901–1981), vivemos por meio da linguagem. O discurso da linguagem tem reflexos diretos na autocompreensão do indivíduo. Que outro animal poderia acessar a ideia da própria morte? Que outra espécie conseguiria atribuir ou não um valor a sua própria existência?
A linguagem é um dos diferenciais humanos. Vivemos em campos distintos: existe nosso mundo elaborado (como um filme estrelado por nós mesmos) e o real. O suicídio se manifesta no campo do real. É o único ato bem-sucedido, citando Lacan. Antes da passagem ao ato, há uma vasta elaboração pelo sujeito (no mais das vezes solitária). Nenhum suicídio acontece devido a fatores precipitantes, é preciso olhar também para os fatores predisponentes, ou seja, elementos da vida da pessoa que levaram ao ato suicida.
Disso segue a urgência de abordar o suicídio pela primazia do sofrimento da pessoa e não pelo fenômeno isolado, pois, somente o próprio indivíduo pode se reposicionar no existir.
É seguro dizer que estaremos sempre “atrasados” na questão fundamental do suicídio. O psicólogo pode ajudar a pessoa que sofre a elaborar suas questões, dar-lhe tempo para respirar de modo que não se esgote a elaboração, mas não lhe cabe “resolver” a vida pelo outro. Campanhas são importantes, podemos e devemos apoiá-las (desde que vinculadas aos propósitos que realmente fazem sentido), mas também podem ser mais um peso para a pessoa em sofrimentos suportar.
No fim do dia, Albert Camus tinha razão. Existes problemas e problemas. A questão do suicídio é o problema fundamental. Não é uma questão filosófica ou clínica somente. O suicídio não se esgota numa campanha anual, tampouco na prática clínica, envolve estruturas sociais, com o pensamos o mundo e as possibilidades de se posicionar nele. De que vida estamos falando quando ponderemos se vale ou não a pena viver?
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